sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Bruno Pestana
Sussurante que fala para lá da janela
DUO/ELO


Somos ouvidos.
Diz o pai sentando-se na poltrona mais antiga da velha sala.

Os seis rapazes foram-se acomodando à volta do patriarca, quer no chão, quer em leves cadeiras de ripas de madeira de pinho.
Quando a mãe se colocou por trás da poltrona apoiando-se nas suas costas, o visitante iniciou a sua história.

Falou-lhes de uma velha família com nove membros.
Tratava-se de uma família nuclear refugiada no campo, com graves problemas de relacionamento com a restante família mais afastada.
Os amigos (que afinal não existiam) e o resto da sociedade desprezava-os e ostracizava-os.
Os elementos daquela família eram todos mulheres.
Seis filhas, todas diferentes.
Eram todas hermafroditas. E os pais eram duas mulheres.

O pai havia mudado de sexo.

Foi a partir dessa operação que tudo mudou para a vida daquela família. E duas das nove filhas meninas, já adolescentes, suicidaram-se. Uma desapareceu e nunca mais se soube dela.

A mãe ficou muito perturbada com este início de história e não conseguiu disfarçar a sua vontade de mudar de assunto e despachar o velho para fora dali depois do jantar prometido…

Vamos jantar, que essas fantasias de terror não me movem nem me dizem!

Afastem de mim a vida e a verdade e serei para vós uma maravilhosa mentira.
Sei que te diz muito mais este terror do qual foges que a vida que vives enquanto cozinhas.
As tuas perturbações devem-se ao desaparecimento de alguém?

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

C.a.r.l.o.s C.u.s.t.ó.d.i.o
VOZ QUE SUSSURRA POR DETRÁS DA CORTINA
DUO/ELO

-Let the games begin!


Diz a voz triunfal vinda do pequeno televisor.
Bigode tratado, patilhas farfalhudas, o enérgico apresentador mistura habilmente as duas línguas enquanto expõe as regras do jogo.

Os rapazes observam encantados o aparelho claramente contrabandeado, obviamente ilegal neste pedaço do mundo perdido no meio de lado nenhum.

O som do gerador sobrepõe-se por vezes ao do televisor.

A Mãe prepara a frugal refeição com os escassos alimentos que todos conseguiram colher.

Sentado no seu pequeno banco o Pai observa o inesperado hóspede de feições enrugadas, sorriso trocista, olhar enlutado.
Quem seria louco o suficiente para atravessar o grande deserto. Como teria ele conseguido passar as Montanhas Gémeas, a Cordilheira dos Perdidos, o Vale daqueles que já foram outrora considerados espíritos.
Se não o tivesse encontrado, decerto teria perecido ao frio, no sopé da Grande Sombra.
Pensa para os seus botões o sagaz caçador.

Num canto já acordado o velho visitante permanece imóvel, de olhos bem abertos num estado de aparente catatonia.

- Confuso?
Pergunta o solicito apresentador antes de partir para a fase seguinte.

Os rapazes deliram... olhos fixos no ecrã absortos de tudo e de todos.


Velho! Ainda estás por cá?
Pergunta mais uma vez o pequeno ser angelical de olhar ameaçador, num sussurro cortante.

No meio de um enorme lago vermelho o velho permanece imóvel.

Viajante tolo!
Viajante velho!
Não terás a ultima palavra, cobarde!
Pensa bem na minha proposta!
Refere a criatura agora transformada em pássaro. Ave de agoiro.

O velho permanece imóvel no meio da rocha circular rodeada de chamas.

Eu voltarei!
Refere o corvo já a voar.

No meio de um imenso jardim o Velho sorri...

- Are you ready?
Pergunta o apresentador num tom desafiador.

O baque do gerador a ir abaixo, provoca o desespero nos jovens rapazes.

Não se preocupem. Vou tratar disto.
Diz o Pai acendendo uma vela.

Olá!
.........

Obrigado por me acolheres.
Sussurra o hóspede inesperado.

Chama os teus, tenho algo para partilhar.
Diz o velho visitante fazendo-se entender perfeitamente.

A família reúne-se diante de tão estranha figura abandonando os seus afazeres de qualquer modo interrompidos.

Venho de longe...de Portugal... um lugar já muito distante, que não vem ao caso e tenho... uma história para vos contar...

terça-feira, 10 de março de 2009

Custódio, Carlos
DOUTORADO EM TERRORISMO CULTURAL E AFINS
DUO/ELO
1º Acto

Tu!
Tu aí!
Caminhante!
Porque vagueias?
Porque vagueias caminhante?
Terras sem dono, sem sal, sem ar que rejuvenesce.
Nem uma só mancha Verde.
Porque saltas?
Porque corres?
Porque ris?
Aqui não chove caminhante!
E o frio que a noite faz.
No meio do escuro ouvem-se gritos e às vezes até eu tenho medo!
Vês? Vês aquele monte?
Achas mesmo que o conseguirás subir?
E as tuas pernas já tão fracas, gastas, velhas, não te irão falhar?
Velho! Fraco! Louco!
Porque choras? Dói? Ris?!
Porque ris?
Porque ris, velho?
Porque ris?
PORQUE RIS?

Pestana, Bruno
MESTRE EM TERRORISMO ARTÍSTICO SEM COMPANHIA
DUO/ELO

Rio.
Porque não sou mar.
Se fosse, chorava sem cessar.
E nesse rio, rio-me.
Rio, rio-me, sem fim à vista.
Não sou do Restelo,
Porque já medi o meu sal
E de lágrimas peso mais que a própria Lua.
Se eu fosse a Lua já teria caído.
E com a minha sorte,
Teria sido em cima da minha própria cabeça.
Seria eureka essa lua cadente tornada em maçã de Adão
Caída em pecado.
Morreria feliz, com ela em cima.
Sem chorar, como te digo.
Sem chorar.
Basta de lágrimas. O mundo não o merece.
E eu não me tenho em tão boa conta.
Por isso rio.
Rio. Rio-me. Rio-te. Rio-vos.
A todos.
De todos.
Rio dos assassinatos e das corrupções,
Dos julgamentos brincalhões e dos juízes mandriões.
Dos políticos fanfarrões.
E das quezílias sem razões.
Sim.
Rio, por desespero, rapaz.
Porque já é tarde demais.
Porque já perdi o medo.
Porque não tarda a ficar escuro.
E já se me acabaram os fósforos.
Mas, respondendo às tuas perguntas:
Vagueio porque sim.
Salto porque faz parte.
Corro porque sempre vi fazerem o mesmo.
E sim, vejo, vejo aquele monte.
E sei que o riso será a única parte de mim que alcançará o topo.
Uma gargalhada básica, sonoríssima e triunfal.
Enquanto tudo o resto derrete.
Enquanto tudo derrete.
Enquanto tudo parece derreter.
Estou farto das tuas perguntas!
Porque perguntas? Posso saber? Responde!!
Faço-te saber, para tua, precisa, informação,
Que só te respondo…
Porque há muito tempo que não valia a pena… responder.
Porque verdadeiramente há muito tempo que ninguém, verdadeiramente,
Me perguntava alguma coisa.
E porque, para te responder com verdade,
- que é coisa que já não pratico há muito tempo -,
Estou igualmente farto das minhas mentirosas respostas.
Vá, agora é a tua vez.
Espero brevemente que a tua ardente juventude me interrompa.
Fica sabendo que se o não fizeres, sou bem capaz de vomitar todas as verdades que tenho dentro de mim.
Cuidado, que o banquete foi grande e demorado…
Que esperas afinal?
Subir àquele monte, choroso?
E choroso, voltar a descer e voltar a subir, rindo, talvez, chorando e rindo.
Como se fosse fácil? Pensas que é?
Tu pensas?
Pensaste? Antes de perguntar?
Vãs palavras…
Porque não voas daqui?